Parte 1 – 2006
_ Davi, eu preciso… te contar uma coisa. _ Ana falou baixinho atrasando os passos para as escadas.
_ Lá vem! O filme vai começar, eu nem sei onde é a sala, fala lá dentro…
_ Não, tem o trailer, me ouve! Por favor… _ E parou no meio do salão
_ Lembra daquela vez… _ Davi disse entre os dentes, com um sorriso preso, dando passos pra trás.
_ Não, não é sua hora de falar… _ Ana retrucou já sorrindo, sem resistir a animação de Davi pela história.
_ … quando a gente perdeu metade do filme conversando aqui fora? _ ignorou
_ lembro… Foi nosso primeiro cinema namorando!
_ Então, quer repetir?
_ Quê?
_ Não, repetir. Repetir perder o filme. Metade. Do filme. _ A melhor arma dele sempre foi seu controle com as palavras. Ele nunca se atrapalhava, e Ana sabia.
_ “Fixação”. O nome do filme. Lembra?
_ Jesus, foi aquele filme horrível.
_ Uhum, era muito ruim.
_ Lembra da gente… _ Davi continuou dissimulando _ …contando o filme pro pessoal da segunda sessão?
_ Como a gente foi parar na segunda sessão?
_ A gente contou pro segurança que tinha perdido a primeira metade do filme…
_ …e ele deixou a gente ver de novo! _ Ana fingiu que lembrou do que ela já sabia desde o início da conversa.
_ Que viagem…
_ A gente era confiável. _ Ana suspirou brevemente e emendou: _ Davi, eu estou saindo com outra pessoa.
_ Eu imaginei.
_ O quê? Como que… como você imagina isso e não diz nada e não pergunta nada?
_ Eu sei que você é complicada, garota, eu te conheço, eu sei…
_ Mas… _ Ana levou as mãos no rosto e falou abafado por entre os dedos: _ … que vergonha!
_ Não fica. Eu sei que se você está saindo com alguém… então você sente alguma coisa. Eu resolvi esperar que você descobrisse, um dia, que o que você sente por mim é maior.
_ Meu Deus, você…
_ Eu te espero. Se você não me mandar embora, eu te espero. Você gosta dele mais do que você gosta de mim?
_ Não! Não sei… Claro que não! Acho que com certeza não. _ pausa _ Eu não sei…
_ Então não me manda embora ainda. Eu te espero.
_ Eu não acho justo você esperar.
_ Você já decidiu?
_ Não! Não…
_ Eu acho que isso aqui vale a pena. Não acho justo virar as costas pro que eu sinto por você só porque você tá indecisa. Eu não to fazendo isso por você, to fazendo por mim.
_ Falando desse jeito…
_ É, simples e sem drama! Relaxa. Eu só quero poder dizer que… Eu fiz tudo o que podia.
Parte 2 – 2016
Eu sou uma artista, Davi. As mentiras, as manipulações… Com você, com meus amigos, com quem eu achava que era o inimigo. Na minha cabeça era tudo arte. E você sabe que eu era ótima naquilo, me sentia forte no controle de tudo. Eu só não fui escritora porque a minha imaginação funcionava criando mundos fabulosos em volta de mim mesma e eu não precisava mostrar nada pro mundo real. Parece a desculpa perfeita, mas não era minha intenção magoar você, eu só tava aprendendo muita coisa sobre mim, de uma só vez.
A novidade é que o sangue nas minhas mãos é muito mais meu do que seu. Eu comecei a me dar mal quando você me olhou, numa noite em 2003, e disse que me amava do jeito mais… sincero. E eu, que já tava no meio de tudo – armações e mentiras, pronta pra acabar com você se quisesse, depois daquele dia não tinha mais… munição. Ou coração. Nem pra te amar, nem pra te destruir. Porque eu fui longe demais, acho, sinceramente, que meu amor por você ficou congelado entre meu orgulho pra sair daquilo de cabeça erguida e a necessidade incessante de te proteger de mim. Por isso eu fugi todas as vezes que pude; e se essa busca por uma explicação não for por culpa ou autoconhecimento, eu posso dizer com absoluta incerteza que te amo do jeito mais imaginário e irreal que não existe. Porque amar mesmo… é ficar.