_ Já disse, Jean. “Annapolis”! _ Ana falou tentando disfarçar o que significava pra ela.
_ Desculpe, estava fazendo umas anotações. Que filme é esse? _ ele perguntou, do outro lado da linha, com tom pouco interessado _ É bom?
_ É sobre um cara que tinha problema com o pai, decide servir a marinha e…
_ Amor, amor, preciso… _ Jean interrompeu.
_ … lá ele se encon… _ Ana tentou completar.
_ … desligar!
_ “OK.”
A voz de Ana ficava aguda, muito aguda, quando ficava nervosa, ou mentia. Então o ideal era falar pouco para não dar pinta, mas não estava nada “OK”. Noivos há sete meses, com casamento marcado para dali a oito dias, Ana estava um caos e Jean parecia se sentir o homem mais afortunado que já existiu, apesar do trabalho o consumir todos os dias e noites.
_ Você também devia ir _ Jean completou, rabiscando em sua agenda _ Tem feito muita coisa esses dias. Filme mamão com açúcar esse, a gente baixa depois. Vai dormir! _ e parou com a caneta para anotar. _ “Annapolis”, né?
_ É. OK.
_ Te amo! _ ele disse mais em tom de despedida que no sentido romântico.
_ Beijo! _ e desligou _ Você que é um mamão com açúcar!
Já te ocorreu de não saber o que pensar, e no que pensar? A família de Ana estava toda na sala, assistindo ao filme “Annapolis”, mas aquele momento se passou como se ninguém estivesse ali. A sala bem escura, o chão frio com piso antigo de tacos, apenas o reflexo da televisão no seu rosto; e nada revelava a dor que ela sentia, nem pra ela mesma. Ana estava encarando o casamento como se fosse o próprio abate, mas “ter dúvidas na véspera é normal”, todos diziam, “você pode tomar um calmante pra dormir”. Talvez a expectativa do grande dia a estivesse consumindo, talvez a ideia de ter que passar o resto da vida como esposa do Jean a estivesse consumindo; qual a diferença? E não era bem uma má ideia. Jean é um bom amigo, ama a família e é certo de dar um ótimo pai. Que mulher pensaria duas vezes em se casar com um cardiologista pediátrico? Ana. Então por que se casar?
“Agradecimento? Culpa? Fuga? Amor?”, ela escreveu num dos seus cadernos – da grande coleção de cadernos quase todos em branco – pra pensar nisso depois, pra esquecer por um momento, pra conseguir dormir.
***
_ Surpresa! _ depois da campainha surgiu, por trás da porta de madeira com detalhes florais entalhados, a voz mais amável que eu já ouvi.
_ Davi?! _ abri com muita pressa e pulei no pescoço dele! _ Foram os três meses mais longos da minha vida! Não faz isso de novo… _ completei com a voz abafada pelo melhor abraço que já existiu.
_ Mas eu tenho que fazer de novo em dois dias! _ ele disse e depois sorriu carinhosamente.
Eu não sei como explicar esse sorriso, mas se eu estivesse presa num universo qualquer onde não existisse nada ao redor, e se eu pudesse escolher uma imagem para olhar pelo resto dos meus dias, seria o Davi sorrindo. Ele estava com o cabelo raspado que eu detestava, rosto e farda impecáveis. Como eu adorava aquela farda branca e como eu amava aquele homem dentro da farda branca.
_ Entra logo! _ e puxei ele pra dentro de casa pela manga.
Dali virei de costas e tudo se apagou. Em questão de segundos eu estava num quarto escuro, com um foco de luz em umas três ou quatro malas, tinha uma cadeira de madeira aterrorizante num canto do quarto e eu no chão, chorando e gritando desesperadamente: “não vai embora!”. Davi em pé, sem a farda, me olhando como se não me escutasse, como se eu não estivesse nem ali.
Ana abriu os olhos e enfrentou o teto. O teto, ultimamente, era a única coisa que ela encarava, e olhava bem nos olhos. Ainda assustada e com receio de alguém tê-la escutado gritar, ou sem saber se estava mesmo gritando, levantou da cama, tomou café com seus pais _ como fez religiosamente pelos últimos 22 anos _ sondando se alguém havia notado algo fora do comum. Mas os seus pais viviam num universo paralelo onde nada ouvem e nada veem, se não quiserem ver. Talvez, se fosse real, eles teriam fingido não ouvir, ou acreditariam convenientemente na explicação mais tola que Ana desse, na esperança de morrer o assunto.
***
_ Mãe, não quero me casar _ Ana confessou com um medo infantil nos olhos.
_ Claro que quer, isso é nervoso. Eu senti também, antes de casar _ sua mãe cochichou sem ao menos abaixar o livro que lia, na varanda, enquanto o pai de Ana regava as plantas.
A vista da varanda para o jardim era o lugar favorito de sua mãe. Um lugar iluminado, arejado por árvores frutíferas, chão de terra, com algumas flores, hortaliças e temperos que o pai plantava e cuidava. Já Ana preferia seu quarto, seus CDs e o mundo particular longe de todos que frequentavam aquela casa. Esse comportamento tem precedentes. Diz-se por aí que a mãe de Ana era uma adolescente rebelde que passava dias trancada em seu quarto, colecionando notícias de assassinatos em recortes de jornal e fotos de artistas que se mataram. Não condiz em nada com a mulher sentada naquela varanda, a não ser pelo livro que lia, de Agatha Christie.
_ E se não for só um nervoso?
_ Você já está casada no civil, então você já está casada. Em sete dias será apenas a cerimônia. _ respondeu ela olhando nos olhos de Ana, por cima dos óculos de leitura.
_ Então posso dormir com ele já? _ ameaçou se encolhendo, aguardando um grito em resposta.
_ Claro que não! Que ideia é essa? _ berrou a mãe se levantando da cadeira e largando o livro. _ Você já dormiu com ele, Ana?
_ Se já estou casada… _ retrucou se afastando lentamente.
_ Não foi isso o que eu disse! _ falou enquanto tirava os óculos de leitura e se apoiava em um dos quadris.
_ Claro que foi, você disse que… _ Ana tentou argumentar.
_ Ana. Você está questionando a validade o casamento perante Deus e a igreja? _ repreendeu a mãe, apontando os óculos na direção de Ana.
_ Não, mãe. _ ela abaixou a voz e decidiu cancelar as perguntas que surgiam na sua cabeça.
_ Então o que isso agora?
_ É dúvida! _ completou envergonhada _ É que eu tive um sonho…
_ Eu também tive sonhos e dúvidas e olhe pra mim e seu pai hoje! _ disse apontando para o pai descartando as flores murchas da petúnia branca.
_ O que você quer que eu olhe? Como vocês nem se tocam?
_ Você acha que no casamento importa mais a paixão ou respeito e amizade?
_ Acho um monte de coisas, entendo que respeito e amizade são os que ficam no final, mas…
_ É o que fica a maior parte de tempo, não no final! Jean é um homem bom, ama você eu nem sei por quê! _ disse a mãe sentando e recolhendo os óculos.
_ Mãe! _ Ana exclamou no tom, mas essa frase não era uma surpresa, sua mãe já havia dito tantas outras vezes que seus namorados eram muito melhores que ela.
_ Eu tenho sorte de ter um genro como ele, não se o que dizer da mãe dele… _ completou tentando recuperar a leitura.
_ Eu não estou ouvindo isso… De novo! Vou sair!
_ Vai aonde?
_ Arrumar o apartamento.
_ Seu pai te leva! _ e gritou de onde estava _ Papai, vem ‘cá!
_ Eu posso ir sozinha, né?
_ Não vai sozinha a lugar nenhum. Não vai encontrar com Jean lá antes…
_ Mãe, eu vou só arrumar as coisas. Sozinha.
_ Seu pai te leva!
No carro, um silêncio absoluto que era quebrado quando um ou outro falava sobre trabalho. Na casa da Ana alguns assuntos só podiam ser discutidos com a mãe, e outros não podiam ser discutidos com ninguém. A viagem curta de dezessete minutos da casa onde cresceu até o apartamento onde irá construir a sua nova vida durou cerca de quarenta e cinco minutos, mentalmente.
_ Vou te esperar aqui em baixo _ disse o pai se ajeitando confortavelmente no assento do carro e fechando os olhos, sem esperar resposta.
***
“Não se esqueça de limpar aqui dentro”. Um bilhete preso na porta de cada um dos armários do apartamento, com a letra do Jean, para a diarista contratada na semana anterior. Ana riu porque não teria deixado recado, talvez deixasse as portas abertas pra ela entender por si só.
_ Sistemático, chato e muito organizado. _ Ana acrescentou dados mentalmente à lista de qualidade e defeitos do futuro marido. _ E se ela não soubesse ler? _ pensou enquanto passava os dedos pelos móveis em busca de evidências que a diarista não era boa. Ou evidências que Jean cometeu um crime na cozinha, pediu pra diarista limpar, mas a moça fez tudo com muita pressa e deixou resquícios incriminatórios que podem livrá-la do casamento. _ Jesus, preciso parar! _ disse sozinha, em voz alta, seguindo pro quarto do casal.
Tudo branco com detalhes cinza e poucos objetos à mostra. O quarto refletia inteiramente a personalidade de Jean. Organizado, detesta barulho e objetos fora do lugar. Sua vida é impecável. É um homem muito breve, não fala muito quando se trata do convívio pessoal, mas no trabalho não lhe faltam palavras. É coautor de dois manuais de medicina e isso o obriga a viajar muito, ministrando palestras em todo país.
Ana não foi ao apartamento pra arrumar, mas pra pensar. Deitou-se na cama, encarou o novo teto que lhe acolheria pelos próximos anos, fixou o olhar em um defeito na recente pintura e permitiu à mente de levá-la onde quisesse. “Vamos, o que você está tentando me dizer?” e fechou os olhos.
_ Prazer em conhecer, meu ônibus está saindo! _ gritou no meio da multidão com tom indiferente.
_ Prazer. Vai lá. _ Eu disse sorrindo, igualmente indiferente, voltando a sentar no chão e olhando de baixo pra cima para ele.
_ Você vai me deixar ir assim?
_ Não estou te ouvindo, a música ‘tá alta! _ eu disse gritando do chão e Davi agachou _ Você vai me deixar ir assim? _ e completou me olhando o mais sério que podia por alguns segundos _ Eu… posso te… beijar?
Eu estava torcendo pra isso acontecer o dia inteiro, desde que ele apareceu com o amigo, de skate, fazendo nada senão distribuindo adesivo de Rádio. Sim, é o primeiro beijo mais tosco da história dos primeiros beijos, mas a gente tinha só 15 e 17 anos, era pra ser tosco. É obrigatório ter vivido esses momentos toscos.
_ Pode _ eu disse com vergonha, mas sem desviar os olhos; eu não conseguia desviar os olhos dos dele. Durou pouco e foi um único beijo, tímido. Tão tímido que não me lembro.
_ Você deu seu telefone pro meu amigo _ ele falou se afastando _ eu vou te ligar!
_ Espera! Não dei o telefone certo.
_ Mas que sonsa…
_ Queria que eu tivesse dado o telefone certo pra ele?
_ Não. _ ele disse sorrindo.
Pulamos dali para a casa dos meus pais, quatro meses depois.
_ Por que você não para de chorar? _ implorou tentando me forçar a levantar o rosto.
_ Não é nada, é coisa minha, não tem nada a ver com você _ eu solucei me escondendo no casaco verde-escuro dele.
_ Não importa o que seja, você pode dizer. _ mentiu.
_ Eu não tenho nada pra dizer. _ eu também menti, olhando bem nos olhos dele e depois abaixei o rosto novamente _ só que você é muito bom pra mim.
_ Não, eu não sou tão bom, eu faço coisas erradas também.
“Aposto que não faz”. Ana abriu os olhos e a lágrima presa escorreu. Aquilo não foi um sonho, mas uma lembrança, como se 2002 tivesse acontecido dia anterior. Dizem que o primeiro namorado é eterno, mas ela não sabia que parte destas visitas inapropriadas era medo do casamento, saudade ou culpa por ter sido a pior história da vida dele, e em alguns dias poderia ser a pior história da vida de outra pessoa.
_ No que você pensa? _ ela se perguntou _ Onde você ‘tá?
***
“Davi, desculpe eu estar te escrevendo assim, sem mais nem menos, mas é um assunto que não pode esperar. Eu vou me casar, em sete dias e preciso” _ Não, isso ‘tá ridículo! _ reclamou rasgando a página de mais um caderno sem escritas.
“Davi, preciso falar com você algo importante, mas só irá valer se a gente se falar dentro dos próximos sete dias!! É muito urgente, olha” _ Putz, de jeito nenhum…
“Davi,
Hoje eu descobri o que é coração apertado. É quando tem alguma coisa lá dentro grande demais pro tamanho dele, e não tem espaço pra mais nada. Coisa boa ou ruim, não importa. Tá errado porque deveria ser proporcional. Coração da gente é pra ser um lugar confortável. E, por alguma razão, estou com coração apertado por você.
Eu tenho pensando em você desde que assisti a esse filme, “Annapolis”, e pode ser o maior clichê enviar uma carta para o ex-namorado nas vésperas do casamento, mas é tudo que eu penso fazer. Sim, eu vou casar… Eu não sei se é o certo ou errado, não sei como você está, ou se esse endereço ainda é seu, mas a ideia de ser de outra pessoa pro resto da minha vida não parece correta enquanto eu penso tanto em você. Enquanto eu lembro das nossas conversas e fantasio novas que nunca vão acontecer.
Eu quero te encontrar pra descobrir o que é isso. Não quero colocar nenhum peso nas suas costas, mas estou sentindo que se você me dissesse qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, até que você não tem nada a ver com isso, eu talvez desistiria de tudo só por te ouvir. Espero sinceramente que não esteja pensando nada de “Como ela me escreve isso depois de tudo que me fez passar?” porque nós dois erramos muito e éramos novos demais pra administrar qualquer sentimento.
16h na pedra do Arpoador, sexta-feira. Eu vou te esperar.”
Ana enviou duas cartas iguais, para os dois endereços que guardou em antigos envelopes de quando se correspondiam. Ambos ficavam em outra cidade, não tão longe que não pudesse ir pessoalmente, mas ela quis dar a ele a escolha. E tudo o que fez em seis dias foi esperar.
*** Aguarde O Próximo Capítulo ***
Niterói
[12/04/2008]
Faz muito tempo que eu não sei do teu rumo. Ouvi dizer que se mudou, que você passou naquela prova… Sei que ninguém te tira esse sorriso, mas será que você ainda toca bateria? Será que ainda quer abrir uma loja? Será que já aprendeu a lição?
Será que ainda perde a fome num encontro? Será que ainda fala demais? Será que ainda procura? E quando achar… Será que você ainda quer morar em Niterói?